BOA-FÉ CONTRATUAL NA VENDA DE VEÍCULOS ADQUIRIDOS EM LEILÃO

Recentemente fui consultado por uma senhora, que será denominada neste artigo de Consulente, sobre o fato de ter adquirido, de determinada pessoa, denominado neste artigo de Vendedor, um veículo automotor cuja procedência era de leilão. Me informou ainda que o Vendedor, quando do momento da compra, na oportunidade em que foi questionado, afirmou que o carro não era de leilão. Diante disto, me indagou quais eram seus direitos contra o vendedor.

Para responder a esta consulta, primeiramente devemos analisar se o presente case se submete ou não ao Código de Defesa do Consumidor.

No caso que me foi submetido para consulta, por se tratar de alienação de veículo efetuado por pessoa física, em regra, não haveria submissão ao Código de Defesa do Consumidor – CDC, exceto, se o Vendedor fosse equiparado a fornecedor por realizar a compra e venda de veículos com habitualidade.

Pois bem ,partindo do princípio de que não é possível provar que o Vendedor realiza, com habitualidade, a compra e venda de veículos, devemos analisar o presente caso sob a ótica e amparo do Código Civil e quais os dispositivos do Código Civil regulamentam o assunto.

Sob a ótica do Código Civil, o presente caso deve ser analisado com base nos seguintes princípios:

  • boa-fé contratual
  • função social do contrato
  • vício redibitório
  • responsabilidade civil do vendedor

Boa-fé contratual e função social do contrato

O artigo 421 do Código Civil estabelece que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Em seguida, o artigo 422 estabelece que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

A boa-fé contratual pode ser subjetiva. Através deste princípio, o contratante entende e crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui de um negócio. A boa-fé contratual pode ser ainda objetiva, que parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.

O que o imperativo da “função social do contrato” resguarda aos contratantes é  que o contrato firmado entre eles não possa ser transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando dano à parte contrária ou a terceiros.

Diante disto, cabe concluir, em observância aos princípios da boa-fé e da função social do contrato, que o alienante, no caso presente o Vendedor, é obrigado, no momento da venda, a prestar todas as informações adequadas e claras sobre as características do produto que está sendo vendido, sendo certo que, qualquer omissão dolosa por parte do Vendedor acarretará ofensa direta a boa-fé contratual, prejudicando a função social do contrato.

No caso sob análise, o Vendedor além de não informar sobre a procedência do veículo, mesmo tendo conhecimento do fato, agiu maliciosamente, ao reiteradamente informar a Consulente que o veículo não era proveniente de leilão, quando questionado. Em outras palavras, houve dolo e má-fé contratual.

Veja-se que, competia ao vendedor informar que o veículo adquirido pela Consulente havia sido anteriormente adquirido em leilão, após ter sido recuperado de sinistro/outro motivo.

Ao deixar de informar a Consulente sobre esse fato, que certamente é determinante para a decisão de compra do veículo ou, ao menos, para a definição de seu preço, o Vendedor, claramente, violou o princípio da boa-fé e da função social do contrato, bem como seu dever de informação.

Por essa razão, o Vendedos deve ser responsabilizado civilmente pelos prejuízos causados a Consulente.

Do vício redibitório

O vício redibitório configura osa defeitos ocultos existentes na coisa alienada, objeto do contrato de compra e venda, que a tornam imprópria para uso a que se destina ou lhe diminuem sensivelmente o valor, de modo que a negociação não se realizaria se estes defeitos fossem conhecidos.

Diante da existência destes defeitos ocultos, nasce para o adquirente o direito de redibir o contrato ou para obter o abatimento no preço.

O Código Civil regulamente o vício redibitório nos artigos 441 a 446.

O art. 441 estabelece que “a coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor”. Em seguida, o art. 442 da a oportunidade para o adquirente de, “em vez de rejeitar a coisa, redibindo o contrato, pode o adquirente reclamar abatimento no preço”.

O art. 443, por sua vez, trata da consequência a ser aplicada ao alienante, que vende o bem sabendo do defeito, vejamos: “se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato”.

Diante disto, prezando pela observância dos artigos 441 a 443 do Código Civil, cabe concluir que a Consulente, por ter ficado sabendo que o veículo havia sido adquirido em leilão somente quando da providência de contratação de seguro para o veículo, tem direito a devolver o veículo adquirido ou ter o abatimento no preço.

Além disto, com base no art. 443 do Código Civil, pelo fato do Vendedor ter ciência de que o veículo havia sido adquirido em leilão e ter mentido sobre esta situação, dá direito a Consulente a perdas e danos.

O prazo que a Consulente possui para requerer seu direito a devolver o veículo adquirido ou ter o abatimento no preço, bem como para se ver reparado pelas perdas e danos é, conforme §1º do art. 445 do Código Civil, de 90 dias, contados do momento em que tiver ciência do vício, no caso, 90 dias após ser informada pelo Vendedor que o seu veículo era proveniente de leilão.

A Consulente, portanto, no prazo de 90 dias do momento em que dele tiver ciência do vício, deverá:

  1. Pleitear o abatimento proporcional no preço, por meio de ação quanti minoris ou ação estimatória, cumulada com pedido de reparação civil por perdas e danos; ou
  2. Requerer a resolução do contrato (devolvendo a coisa e recebendo de volta a quantia de dinheiro que desembolsou), sem prejuízo de perdas e danos, por meio da ação redibitória, cumulada com pedido de reparação civil por perdas e danos.

Da responsabilidade civil pelas perdas e danos

A análise da responsabilidade civil do Vendedor pelas perdas e danos acarretadas a Consulente deve ser feita através de uma interpretação teleológica dos artigos 443, mencionado alhures, e aos artigos 186 e 927 do Código Civil.

Modernamente, quando se fala em responsabilidade com ou sem culpa, deve se ter em conta a culpa em sentido amplo, que engloba o dolo – violação intencional com objetivo de prejudicar outrem, e culpa – desrespeito a um dever preexistente, não haver a intenção de violar o dever jurídico, que acaba sendo violado por outro tipo de conduta.

O artigo 186 do Código Civil estabelece que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Em complemento, o artigo 927 do Código Civil estabelece que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Para que se configure a obrigação do agente, causador de um dano (Vendedor), de reparar a vítima (Consulente), indenizando-a, é necessária a presença dos seguintes requisitos:

  • Ação ou omissão;
  • Culpa genérica (dolo ou culpa)
  • Relação de causalidade ou nexo causal; e o
  •  

No caso objeto deste artigo/consulta, estão presentes:

  • a ação do Vendedor, ao vender o veículo automotor para a Consulente
  • o dolo do Vendedor, pelo fato de ter vendido um veículo de que sabia a procedência – que havia sido adquirido em leilão
  • o dano acarretado à Consulente, ao ter comprado um veículo oriundo de leilão, pelo valor de tabela, ou seja, acima do valor de venda no mercado
  • o nexo causal entre a ação do Vendedor e o dano acarretado à Consulente

Posto isto, conclui-se que o Vendedor deverá ser responsabilizado civilmente a reparar a Consulente pelas perdas e danos, pois praticou ato ilícito (dolo) e acarretou danos a Consulente, conforme estabelece o art. 443 do Código Civil.

Do entendimento do judiciário sobre a questão

Neste tópico será analisado o posicionamento do Judiciário sobre esta questão posta em análise.

O Desembargador Milton Paulo de Carvalho Filho, do Tribunal de Justiça de São Paulo/SP, na Apelação nº 0008302-23.2014.8.26.0650, ao analisar caso similar, o qual o réu havia alienado veículo sinistrado, omitindo tal informação, causando prejuízos em razão da desvalorização do bem, condenou o vendedor nos seguintes termos: “Assim, o apelante faz jus à indenização no valor de R$8.240,00, com correção monetária desde o ajuizamento da ação e juros de mora deste a citação”. Neste mesmo acordão o Desembargador deixou de condenar o réu em dano moral, bem como na cláusula penal do contrato. Vejamos a ementa:

“COMPRA E VENDA DE BEM MÓVEL. Veículo recuperado de sinistro. Fato omitido pela vendedora. Responsabilidade pelo vício de qualidade do produto (art. 18 do CDC). Ausência de informação adequada ao consumidor. Indenização por danos materiais. Desvalorização do veículo. Danos morais não configurados. Mero aborrecimento. Multa contratual inaplicável. Ausência de previsão contratual. Recurso parcialmente provido”. (g.n.)

Neste mesmo sentido, cita-se alguns outros precedentes do TJSP:

“COMPRA E VENDA – Ação de anulação de negócio jurídico c/c pedido indenizatório Parcialmente procedente Veículo sinistrado com recuperação Vício oculto Ausência de informação ao consumidor Dano material Indenização devida – Dano moral não configurado – Apelação parcialmente provida. (TJSP, Apelação nº 1023983-72.2014.8.26.0405, Rel. Luiz Eurico, 26ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, j. 24/04/2017)” (g.n.)

“COMPRA E VENDA – INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS – VÍCIO REDIBITÓRIO Aquisição de veículo sinistrado proveniente de leilão – Vício redibitório verificado Abatimento no preço no valor da desvalorização do veículo Inteligência do art. 442 do Código Civil Dano moral, porém, não caracterizado – Mero aborrecimento decorrente de relação contratual – Verba indevida – Afastamento da condenação imposta em primeiro grau a esse título – Recurso da ré provido em parte. (TJSP, Apelação nº 0007400-04.2012.8.26.0533, Rel. Claudio Hamilton, 25ª Câmara de Direito Privado, j. 17/09/2015)” (g.n.)

“BEM MÓVEL. Venda e compra de veículo sinistrado. Fato omitido pela ré. Responsabilidade pelo vício de qualidade do produto (art. 18 do CDC). Indenização fundada em dano material arbitrada em R$7.560,00, correspondente a 40% do valor de mercado do veículo que adquirira da ré. Quantia não impugnada e que se revela adequada ao caso concreto. RECURSO NEGADO. (TJSP, Apelação nº 1014643-49.2014.8.26.0003, Rel. Maria de Lourdes Lopez Gil, 36ª Câmara de Direito Privado, j. 11/06/2015)” (g.n.)

Analisando a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG sobre a questão, cabe citar decisão da 15ª Câmara Cível, na Apelação Cível nº 1.0433.10.002963-9/002, julgado em 27/02/14, cujo Relator foi o Ministro Tiago Pinto, que condenou o vendedor ao pagamento de R$10.000,00 a título de danos morais pela venda de veículo adquirido em leilão. Vejamos:

“Posto isso, rejeita-se a preliminar de cerceamento de defesa e, no mérito, DÁ-SE PROVIMENTO AO RECURSO para condenar a ré, ora apelada, no pagamento, a título de danos morais, de R$10.000,00 (dez mil reais). Tal quantia deverá ser acrescida de juros de mora de 1% ao mês a partir da data da citação, bem como de correção monetária pela Tabela da Corregedoria de Justiça desde a data de publicação deste acórdão. Pague a ré, ora apelada, as custas processuais e os honorários advocatícios, estes fixados em 15% sobre o valor da condenação”.

Da conclusão

Com base na fundamentação jurídico mencionada nos tópicos anteriores, bem como da jurisprudência pacifica sobre a questão dos Tribunais Superiores, conclui-se que é direito da Consulente a, dentro do prazo de 90 dias do momento em que dele tiver ciência do vício, de:

  1. Pleitear o abatimento proporcional no preço, por meio de ação quanti minoris ou ação estimatória, cumulada com pedido de reparação civil por perdas e danos; ou
  2. Requerer a resolução do contrato (devolvendo a coisa e recebendo de volta a quantia de dinheiro que desembolsou), sem prejuízo de perdas e danos, por meio da ação redibitória, cumulada com pedido de reparação civil por perdas e danos.

Além disto, restando demonstrado que sofreu abalo psicológico, poderá requerer além de danos materiais, indenização à título de danos morais.

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