O TABELAMENTO DO FRETE É LEGAL?

A Medida Provisória nº 832/18, convertida na Lei nº 13.703/18, publicada no DOU no dia 09/08/2018, oficializou a Política Nacional de Pisos Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas.

Com a conversação da Medida Provisória nº 832/18 na Lei nº 13.703/18, o único dispositivo vetado pela Presidência foi o artigo 9º, que previa a anistia das multas aplicadas durante as manifestações ocorridas entre 21/05/2018 e 04/06/2018.

A questão a ser discorrida neste artigo, sem o objetivo de esgotar o tema, é sobre a legalidade e constitucionalidade de alguns pontos desta lei, principalmente, sobre o tabelamento do frete.

O texto não traz os valores mínimos do frete, mas estabelece as balizas para que a ANTT os defina.

Sob a égide da Medida Provisória nº 832/18, a ANTT editou a Resolução ANTT nº 5.820/18, a qual não estabeleceu sua continuidade com a vigência da Lei nº 13.703/18.

No ponto de vista deste autor, a Resolução 5.820/18 permaneceu em vigor até 20/01/2019, data limite para que a ANTT publicasse uma nova tabela.

O fundamento para este posicionamento está no fato que, apesar da Lei nº 13.703/18 não trazer qualquer previsão de eficácia temporal, a Medida Provisória nº 832/18, que prevê, no §3º do art. 5º, que a primeira tabela terá vigência até 20 de janeiro de 2019 e valerá para o semestre que for editada (§1º).

Vejamos o que estabelece o artigo 5º e seus parágrafos:

Art. 5º Para a execução da Política de Preços Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas, a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT publicará tabela com os preços mínimos referentes ao quilômetro rodado na realização de fretes, por eixo carregado, consideradas as especificidades das cargas definidas no art. 3º

§ 1º  A publicação da tabela a que se refere o caput, ocorrerá até os dias 20 de janeiro e 20 de julho de cada ano e a tabela será válida para o semestre em que for editada.

§ 2º  Na hipótese da tabela a que se refere o caput, não ser publicada nos prazos estabelecidos no § 1º, a tabela anterior continuará válida e seus valores serão atualizados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, ou por outro que o substitua, no período acumulado.

§ 3º  A ANTT publicará a primeira tabela a que se refere o caput,a qual vigerá até 20 de janeiro de 2019, no prazo de cinco dias, contado da data de publicação desta Medida Provisória. 

§ 4º Os preços fixados na tabela a que se refere o caput têm natureza vinculativa e a sua não observância sujeitará o infrator a indenizar o transportador em valor equivalente ao dobro do que seria devido, descontado o valor já pago.

A ANTT pode, com base neste dispositivo, publicar uma nova tabela a qualquer momento, porém, até esta publicação, a tabela publicada é ilegal.

Paralelamente à publicação da Resolução 5.820, a ANTT deu início à Tomada de Subsídios ANTT nº 9/18, com o objetivo de obter:

“(…)

contribuições para aprimoramento da metodologia e respectivos parâmetros utilizados na elaboração da tabela de frente

(…)”.

Apesar de não existir obrigatoriedade na publicação da nova tabela, o prazo para envio das sugestões se encerrou em 2.8.2018, o que cria expectativa para a publicação de nova Resolução nas próximas semanas.

Cabe ainda ressaltar a inconstitucionalidade do §2º do art. 4º da Lei nº 13.703/18 frente ao princípio da livre iniciativa, ao vedar “a celebração de qualquer acordo ou convenção, individual ou coletivamente, ou mesmo por qualquer entidade ou representação de qualquer natureza, em condições que representem a prática de fretes em valores inferiores aos pisos mínimos estabelecidos na forma desta Lei”

A proibição é inconstitucional porque fere frontalmente o princípio da livre iniciativa constante no art. 170 da CR/88.

O artigo 170 da CR/88 reza que a ordem econômica brasileira funda-se na livre iniciativa, devendo observar o princípio da livre concorrência, em benefício, inclusive, dos consumidores. A fixação livre de preços é um dos aspectos do princípio constitucional da livre iniciativa. O controle prévio de preços, mesmo como política pública, contraria frontalmente tal princípio constitucional. O tabelamento, portanto, fere o artigo 170 da Constituição Federal, por impedir a livre negociação entre as partes e obrigar um grupo a seguir determinados preços.

Em sede de Direito Concorrencial, o tabelamento afronta o artigo 36 da Lei nº 12.529/11. Com base nesta lei, não é aceitável que intervenções do Estado possam ferir e eliminar a livre iniciativa e a livre concorrência. Exemplo de agressão, sob qualquer fundamento adotado, é a supressão da liberdade de fixação de preços, verificada no tabelamento.

Por fim, e não menos importante, cabe mencionar que, além de contrariar o artigo 170 da CR/88, é ilegal, por não observar o caput do art. 2º da Lei nº 11.442/07, que estabelece que “a atividade econômica de que trata o art. 1o desta Lei é de natureza comercial, exercida por pessoa física ou jurídica em regime de livre concorrência, e depende de prévia inscrição do interessado em sua exploração no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas – RNTR-C da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT…”

O tabelamento de preço já foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal. Vejamos:

CONSTITUCIONAL. ECONÔMICO. INTERVENÇÃO ESTATAL NA ECONOMIA: REGULAMENTAÇÃO E REGULAÇÃO DE SETORES ECONÔMICOS: NORMAS DE INTERVENÇÃO. LIBERDADE DE INICIATIVA. CF, art. 1º, IV; art. 170. CF, art. 37, § 6º. I. – A intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica. CF, art. 170. O princípio da livre iniciativa é fundamento da República e da Ordem econômica: CF, art. 1º, IV; art. 170. II. – Fixação de preços em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor: empecilho ao livre exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre iniciativa. III. – Contrato celebrado com instituição privada para o estabelecimento de levantamentos que serviriam de embasamento para a fixação dos preços, nos termos da lei. Todavia, a fixação dos preços acabou realizada em valores inferiores. Essa conduta gerou danos patrimoniais ao agente econômico, vale dizer, à recorrente: obrigação de indenizar por parte do poder público. CF, art. 37, § 6º. IV. – Prejuízos apurados na instância ordinária, inclusive mediante perícia técnica. V. – RE conhecido e provido. DJ 24-03-2006. RE nº 422.941/DF, Segunda Turma, Relator o Ministro Carlos Velloso.

Em outra decisão, o Ministro Luiz Fux, no Recurso Extraordinário nº 632.644 AgR/DF, julgado em 10/4/2012, entendeu pela proteção constitucional:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. FIXAÇÃO PELO PODER EXECUTIVO DOS PREÇOS DOS PRODUTOS DERIVADOS DA CANA-DE-AÇÚCAR ABAIXO DO PREÇO DE CUSTO. DANO MATERIAL. INDENIZAÇÃO CABÍVEL. 1. A intervenção estatal na economia como instrumento de regulação dos setores econômicos é consagrada pela Carta Magna de 1988. 2. Deveras, a intervenção deve ser exercida com respeito aos princípios e fundamentos da ordem econômica, cuja previsão resta plasmada no art. 170 da Constituição Federal, de modo a não malferir o princípio da livre iniciativa, um dos pilares da república (art. 1º da CF/1988). Nesse sentido, confira-se abalizada doutrina: As atividades econômicas surgem e se desenvolvem por força de suas próprias leis, decorrentes da livre empresa, da livre concorrência e do livre jogo dos mercados. Essa ordem, no entanto, pode ser quebrada ou distorcida em razão de monopólios, oligopólios, cartéis, trustes e outras deformações que caracterizam a concentração do poder econômico nas mãos de um ou de poucos. Essas deformações da ordem econômica acabam, de um lado, por aniquilar qualquer iniciativa, sufocar toda a concorrência e por dominar, em consequência, os mercados e, de outro, por desestimular a produção, a pesquisa e o aperfeiçoamento. Em suma, desafiam o próprio Estado, que se vê obrigado a intervir para proteger aqueles valores, consubstanciados nos regimes da livre empresa, da livre concorrência e do livre embate dos mercados, e para manter constante a compatibilização, característica da economia atual, da liberdade de iniciativa e do ganho ou lucro com o interesse social. A intervenção está, substancialmente, consagrada na Constituição Federal nos arts. 173 e 174. Nesse sentido ensina Duciran Van Marsen Farena (RPGE, 32:71) que “O instituto da intervenção, em todas suas modalidades encontra previsão abstrata nos artigos 173 e 174, da Lei Maior. O primeiro desses dispositivos permite ao Estado explorar diretamente a atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. O segundo outorga ao Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica. O poder para exercer, na forma da lei as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo esse determinante para o setor público e indicativo para o privado”. Pela intervenção o Estado, com o fito de assegurar a todos uma existência digna, de acordo com os ditames da justiça social (art. 170 da CF), pode restringir, condicionar ou mesmo suprimir a iniciativa privada em certa área da atividade econômica. Não obstante, os atos e medidas que consubstanciam a intervenção hão de respeitar os princípios constitucionais que a conformam com o Estado Democrático de Direito, consignado expressamente em nossa Lei Maior, como é o princípio da livre iniciativa. Lúcia Valle Figueiredo, sempre precisa, alerta a esse respeito que “As balizas da intervenção serão, sempre e sempre, ditadas pela principiologia constitucional, pela declaração expressa dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre eles a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (DIÓGENES GASPARINI, in Curso de Direito Administrativo, 8ª Edição, Ed. Saraiva, págs. 629/630, cit., p. 64). 3. O Supremo Tribunal Federal firmou a orientação no sentido de que “a desobediência aos próprios termos da política econômica estadual desenvolvida, gerando danos patrimoniais aos agentes econômicos envolvidos, são fatores que acarretam insegurança e instabilidade, desfavoráveis à coletividade e, em última análise, ao próprio consumidor.” (RE 422.941, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ de 24/03/2006). 4. In casu, o acórdão recorrido assentou: ADMINISTRATIVO. LEI 4.870/1965. SETOR SUCROALCOOLEIRO. FIXAÇÃO DE PREÇOS PELO INSTITUTO DO AÇÚCAR E DO ÁLCOOL – IAA. LEVANTAMENTO DE CUSTOS, CONSIDERANDO-SE A PRODUTIVIDADE MÍNIMA. PARECER DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS – FGV. DIFERENÇA ENTRE PREÇOS E CUSTOS. 1. Ressalvado o entendimento deste Relator sobre a matéria, a jurisprudência do STJ se firmou no sentido de ser devida a indenização, pelo Estado, decorrente de intervenção nos preços praticados pelas empresas do setor sucroalcooleiro. 2. Recurso Especial provido. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.

Posto isto, cabe concluir que a aplicação imediata e irrestrita do preço mínimo dos fretes acaba com a segurança jurídica que é base constitucional e legal para todos os negócios jurídicos celebrados sob a legislação pátria.

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